Entrevista | Quilombo dos Luízes

Mestra Julia, Mestra Maria Lucia, Carem Abreu e Mestra Maria Luzia • foto: João Dicker

Como é que começou essa história do Quilombo dos Luizes? – João

Isso aqui já existe antes. – Maria Lucia

É. O Quilombo vem de antes de ser Belo horizonte. A gente está aqui desde 1800 e tanto. Já existia um quilombo aqui porque era dos meus bizavós. Ainda não era nem a capital, não existia Belo Horizonte. Os meus avós e tios avós nasceram, na verdade, em Nova Lima. A matriarca, mãe dos meus avós era a Ana Polinaria Lopes. Ela era a escrava de um escravagista e teve 9 filhos com ele. Eram 6 homens e 3 mulheres. A gente tem o nome de “Luizes” porque como ele chamava Antonio Luiz Simão Lopes, ele deu o nome para todos os escravos filhos dele o sobrenome de “Luizes”. Ele fez isso pra que os filhos não fossem mais escravos e sim reconhecidos como filhos dele. Era então a Aurora Luiz, Maria Luiz e Eulalia Luiz. Os homens também, porque eles eram livres. Todo mundo via eles por ai, achavam que eles eram escravos fugidos mas ai falavam. Eles são os Luizes. Daí que veio o nome. – Maria Luzia

E vocês estão aqui desde quando?

A gente está aqui desde quando era Fazenda Calafate. A Maria Luiz casou com um fazendeiro aqui na fazenda Calafate [onde hoje é o bairro Grajaú. Ai o vovô pediu que as irmãs dele pudessem morar aqui também e ai veio à vovó com as irmãs morar aqui. Mas eu preciso falar que não fomos nós que viemos pra cá, foi a cidade que veio pra nós porque tudo aqui era Curral Del Rei ainda. Assim nasceu o Quilombo dos Luizes, com a vovó e as irmãs morando aqui, vivendo aqui e criando os filhos aqui. – Maria Luzia

A tradição de lideranças femininas já vem desde essa época então né?

O Quilombo dos Luizes mesmo começou com a minha avó, Maria Luiz. É até uma incógnita isso porque naquela época as mulheres não tinham valor e no nosso Quilombo é diferente. É quase como no Quilombo dos Zumbi, que quem mandava era Dandara. Aqui quem comanda são as mulheres. Nosso quilombo é matriarcal. A Maria Luiza mãe da minha avó, mãe do meu pai, começou aqui com ela, a primeira a criar os filhos. Então nossa família e nosso quilombo é Matriarcal até hoje. – Maria Luzia

Vocês percebem uma diferença para o Quilombo em si, o fato de ter uma liderança matriarcal?

Menino, a gente percebe porque aqui no Quilombo tem tanto homem e tanto menino jovem que, graças a deus, a gente não tem essa dificuldade de escola e tudo, mas a gente sente que até hoje a liderança é de mulher. Às vezes eu ate penso “porque que os homens não tomam a frente aqui?” – Maria Luzia

Eles já estão até adultos e não tomam – Maria Luiza

Pois é. Por incrível que pareça a primeira construtora que invadiu a gente foi a Vale. Naquele prédio grandão com a academia embaixo que foi o primeiro a subir e invadir o terreno. Depois veio um monte. Mas nessa época, quem ia lá na frente lutar com eles, bater de frente, eram as mulheres. Eu mesma já fui parar na delegacia de camburão várias vezes e um monte de coisa. Chegava lá e eu mostrava que nosso registro antecedia Belo Horizonte.

É, não existia ainda. Na época era Sabará. – Maria Luiza

É. Na época não tinha nem cartório. Os nossos documentos eram tudo com marca de Sabará. Ai os delegados falavam “eu conheço e isso aqui não é falso”, mesmo com o pessoal que invadia aqui falando que era falso. Quando a gente chegava lá eles questionavam que a gente não sabia nada da terra, do que tinha lá antes de tudo e eu falava pra eles “o moço, mas você não me conhece e nem você sabe o que tinha lá. Se vocês soubessem, é porque foram procurar com pessoas antigas daqui e o senhor está enganado porque o meu pai trabalhou aqui, em uma torre de tijolo” Falava assim.. – Maria Luzia

Ele tinha era uma chaminé né – Maria Luiza

É. Era uma torre daquelas grandonas de forno de tijolo.. – Maria Luzia

A gente não tem nenhuma foto dessa torre de tijolo né?, Maria Lucia.

A torre que tinha era em frente a casa de tia Flausina. Então os delegados falavam que isso tudo aqui era nosso mesmo porque eles trabalharam na delegacia de Sabará e viam que eram documentos verdadeiros. Tudo com escrita antiga, Belo Horizonte escrito com dois Ls, dois Os. Mas então antigamente como não tinha cartório, foi o meu bisavó que era o dono das terras, ele fez os documentos todinhos. Ai em seguida ficou sendo a vovó a dona das terras e assim por diante foi passando com as mulheres. – Maria Luzia.

Como é a relação do Quilombo com a sociedade civil atualmente? – João

“Bom, eu posso dizer que hoje eu estou vivendo tudo o que a vovó viveu quando começou com as terras lá atrás. E essas coisas são o quê? Ameaças! Aqui no Grajaú, que não era Grajaú e antes era Fazenda Calafate, todo mundo achou que hoje era um lugar ótimo pra invadir. Hoje eu falo e quero falar de novo: se fossemos nós que estivéssemos invadindo o terreno de gente branca não-política, eles iam chegar com polícia e batendo em todo mundo”.

Mas o Maria Luzia, agora é hora de falar de coisa boa. – Maria Luiza

Eu não tenho memórias boas depois de tanta coisa ruim e tragédia que passamos. Então pode passar para as outras. Eu conto pelas partes e pela história que está ligada ao território.. – Maria Luzia

Eu concordo com o quê a Luiza ta falando. – Maria Lucia

Eu só tenho memória boa e história boa com isso tudo aqui. A minha lembrança é que tinha muita manga, café, limão, laranja e muito pé de jambu. Eu lembro que eu era criança e brincava muito com os bichos do mato, coelho do mato, jaguatirica, tinha gambá. A minha infância era de trepar nas árvores, brincar nas plantações na casa de vovó e no córrego que passava. A minha lembrança da infância daqui é essa. – Maria Luiza

Tinha também as festas juninas do bairro. – Maria Lucia

É verdade. Era muito legal que as festas juninas era com o pessoal todo do bairro. Todo mundo vinha, descia pra cá e comemorava na festa junina junto.. – Maria Luiza

Isso é tudo muito bom e muito bonito mesmo. Mas eu, infelizmente, depois dessas invasões todas, apaguei da minha memória essas coisas boas.. – Maria Luzia

“Mas o que a gente precisa lembrar é das coisas boas – Maria Lucia

Atualmente, a minha revolta é tanta que eu infelizmente só lembro das cosias que perdemos e lutamos. – Maria Luzia

Atualmente, vocês estão na posição de liderança aqui no quilombo. Como vocês tem tentado equilibrar essa possibilidade de dar bons momentos para as pessoas, mas ao mesmo tempo resistir e lutar? – João

É o que a gente tenta fazer, mas é difícil também porque a verdade é que a maioria dos jovens daqui não estão tão interessados em dar continuidade ao legado, a resistência cultural e histórica daqui.. – Maria Luiza

Em 2018 o Quilombo foi reconhecido como Patrimônio Cultural no contexto urbano de Belo Horizonte pelo IEPHA. Quão importante foi esse reconhecimento para vocês?

Ah, é importante demais. A gente tem muita história aqui, já aconteceu muita coisa aqui. – Maria Luiza

Tinha até Mula Sem Cabeça aqui. Não é mesmo Luiza?..- Maria Lucia

Tinha um mata-burro aqui no terreno que uma vez pegou uma Mula Sem Cabeça.. – Maria Luiza

Tinha lobisomem também.. – Maria Luzia

É realmente muita história para contar, não é mesmo?

Você não acredita não? Aqui tinha até fantasma! Tinha uma ponte aqui em cima do córrego que quando a mamãe ia atravessar, ela falava que via um monte de assombração por ali, um guarda que desaparecia do nada e umas moças que vinha correndo pra cima da gente rezando.. – Maria Luiza

Eu dormindo de noite e a cachorrada começava tudo a latir, a uivar e ai via um bicho andando por ai.. – Maria Lucia.

Em tempos tão difíceis como os que vivemos atualmente no mundo e no Brasil, vocês, como três líderes de uma comunidade tem alguma mensagem que gostariam de passar para as pessoas?

É aquilo que falei, a gente precisa lembrar das coisas boas, das memórias boas da infância, da história e da família pra continuar seguindo em frente. É uma luta todos os dias, que a gente tem aqui e com os jovens. Tem que passar pra frente a história e as coisas boas, pra poder seguir em frente e resistir.. – Maria Luiza