Entrevista | Mestra Nani de João Pequeno • CECA
Você pode se apresentar, por favor
Eu me chamo Cristiane Santos Miranda e sou conhecida no mundo da Capoeira como Nani de João de Pequeno.
Como começou sua relação com a Capoeira Angola?
A minha relação com a capoeira vem desde a minha infância, por ser neta e criada pelo mestre João Pequeno. Sou a primeira neta e todos que ele tem.
E quando você começou a praticar a capoeira?
Comecei a capoeira no ano de 1995, mas vivo dentro dela desde a minha infância, começando a praticar efetivamente em 95 quando o meu avô (Mestre João Pequeno) começou um trabalho na comunidade que me fez encantar pela forma como ele tratava os alunos. Eu tinha muita carência dessa atenção do meu avô, então a capoeira me proporcionou essa atenção e proximidade dele. A partir daí eu comecei e segui o caminho dentro de todas as dificuldades que temos dentro a sociedade enquanto jovem, adolescente, mulher que mora em uma comunidade carente e com pouco investimento no conhecimento escolar. E a capoeira vem me proporcionando uma forma de estar seguindo o caminho, mesmo com todas as dificuldades. Foi dessa forma que eu iniciei.
O CECA-AJPP constitui um dos marcos físicos que representa a memória social e cultural de um povo. No cenário atual, você sente que este marco se tornam ainda mais importante?
O CECA para nós é uma memória, um espaço de resistência e de se manter uma tradição. Hoje o CECA é uma instituição importante para transmitirmos essa memória e a historia do Mestre João Pequeno e do Mestre Pastinha. Então se a gente não manter isso, vai se perder. Pode chegar uma época em que as pessoas vão procurar informações da capoeira angola e não vão encontrar. Até porque os grandes mestres infelizmente, muitos estão indo. Então é muito importante que quem fique mantenha essa memória para que a nova geração possa conhecer não só através da historia, mas também da vivência. A capoeira também é prática, vivência e filosofia de vida e a gente não pode deixar isso morrer.Como é a relação com o restante da sociedade? Você sente a devida valorização da Capoeira como uma manifestação tão importante, como é na cultura popular brasileira?
A Capoeira teve grandes avanços no que diz respeito a valorização como uma manifestação. Os mestres conseguiram expandir ela para um público, apesar de eu acreditar que no território brasileiro ocorre uma descaracterização, de acordo com algumas vivencias em subúrbios, vejo a capoeira angola ainda sendo ma vista e percebida como uma manifestação negativa. Não em uma questão de violência, mas religiosa. Esses avanços todos e as propostas que o poder publico tem feito levantam a questão do “para quem?”. Para a sociedade em si ainda é negado o acesso. A gente chega nas comunidades, levando a capoeira angola de forma espontânea, mas quem vai investir para que esses mestres deem continuidade aos trabalhos nas comunidades é o poder público. Acredito que falta ainda a valorização dos mestres e da capoeira para que esse trabalho continue acontecendo onde mais se precisa, nos subúrbios e regiões mais marginalizadas das cidades.
Qual a principal ou as principais dificuldades que enfrentam na inclusão na sociedade como um todo?
O poder público precisa entender que as nossas manifestações culturais são espaços de formação, então prendem a formação dos nossos jovens, educadores e professores a uma educação americanizada e europeia, mas se esquecendo de que temos um rico berço de conhecimento e informação. Para os nossos professores e jovens trazer o conhecimento da nossa cultura é valorizar as nossas raízes e nossos princípios, e o poder publico precisa acordar para isso.
O que você percebe que ainda poderia ser feito pelo poder público como forma de dialogar mais com as comunidades quilombolas e inseri-las propriamente na sociedade?
Enquanto eles não olharem de forma privilegiada para nossa cultura eles não vão conseguir ter avanços na nossa educação e na nossa sociedade. A cada dia vai se perdendo a nova geração e a continuidade de grandes movimentos culturais, sendo a capoeira um exemplo disso. Hoje a capoeira da um direcionamento para tantos jovens entenderem o que eles serão, tendo uma formação tão rica, que ajudamos a ele conseguir se entender e decidir o que quer ser. Isso faz com que nossos jovens continuem sonhando e o poder público precisa entender o quanto nossa cultura é rica para nossa sociedade.
O quão importante é a realização de eventos e atividades como a Mostra Cine Afro BH que se preocupam e comprometem com a valorização de comunidades quilombolas e com a atuação de líderes das comunidades de raízes de matriz africana no Brasil?
O trabalho da Mostra é importante para que a nova geração, principalmente, conheça o passado e o presente desses grandes movimentos sociais, conhecendo os mestres do passado e que dão sequencia a o que os do passado trouxeram ate aqui e o que transmitem para a atualidade. É uma forma de manter e resgatar as tradições criadas dentro de tanta luta e resistência destes povos. A Mostra Cine Afro BH é importante para valorizar toda manifestação que existe e acontece como forma de resistência, trazendo essa conscientização, valorização e humanização. Hoje esta faltando muito isso na formação das pessoas, que é muito engessada e segue um padrão capitalista, rígido no sentido de esquecer-se da formação ligada às raízes locais.
E você percebe uma desvalorização com isso, certo?
Isso acaba desvalorizando nossa cultura e nossa sociedade, negando o conhecimento para o nosso povo. Não podemos chegar à escola e ver em uma aula de historia o foco voltado para a historia de países estrangeiros. Eu enquanto professora de educação física na escola, tenho dificuldade de apresentar as manifestações culturais de raízes brasileiras e afro-brasileiras porque os alunos só querem saber os esportes europeus como o futebol e o vôlei. Mas o nosso esporte, nossa luta e nossa arte tem muita historia, tem dança e são valores que os alunos têm dificuldade de ouvir por causa deste sistema de ensino.
Como você se sente com esta realidade?
É triste viver em uma realidade assim, principalmente para quem vive a capoeira como filosofia de vida. A capoeira nos renova nos transforma e nos leva pra frente, é uma extensão da nossa formação e precisamos levar para o além da academia e do nosso quadrado.
MESTRE JOÃO PEQUENO
Nascido em Araci, no interior baiano e registrado como João Pereira dos Santos, o jovem fugiu da seca a pé em 1933 e segui até Alagoinhas, onde conheceu a capoeira. Aos 25 anos ele mudou-se para Salvador, filiou-se ao Centro Esportivo de Capoeira Angola, congregação criada pelo Mestre Pastinha. Tornou-se discípulo e ensinou outros capoeiristas importantes para a história da capoeira angola na Bahia, entre eles, o Mestre Curió. João foi discípulo daquele que viria a ser um grande mestre, o Sr. Vicente Ferreira Pastinha, um dos principais nomes relacionados a Capoeira na Bahia.
Em sua vida, foi um grande defensor e guardião das tradições culturais e da memória histórica da capoeira e da cultura de raízes africanas no nordeste. Na década de 90, por exemplo, se assumiu como uma das principais referências na luta contra o poder do Estado em tentativas de desocupar o forte Santo Antônio para reformas e modificações no uso do espaço. Na mesma época, foi amplamente homenageado recebendo o título de Cidadão da Cidade de Salvador pela Câmara Municipal de Vereadores, além de ter sido apontado como Comendador de Cultura da República, pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O Mestre João Pequeno sempre impressionou a todos que tinham o prazer de vê-lo em rodas de capoeira, além de ter se destacado como um importante educador na capoeira, um referencial de luta e de vida em defesa da nobre arte afrodescendente. Após o falecimento de Mestre Pastinha, Mestre João Pequeno é reconhecido pela comunidade angoleira como o “Guardião da capoeira angola” e reabre no Forte de Santo Antônio Além do Carmo o Centro Esportivo de Capoeira Angola, o CECA e a Academia de João Pequeno de Pastinha, –seguindo sua atuação honrando a memória do Mestre ao desenvolver a Capoeira na forma em que lhe foi ensinada e transmitida pelas gerações.
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